Análise: Date Everything

Date Everything é um daqueles jogos que, à primeira vista, parece uma simples piada esticada para lá do razoável, mas que acaba por surpreender com uma profundidade e qualidade que poucos esperariam de um simulador de encontros com objectos inanimados. Desenvolvido pela Sassy Chap Games e publicado pela Team17, este título é, ao mesmo tempo, uma sátira brilhante aos clichés dos dating sims e uma carta de amor ao absurdo. É uma experiência tão rica quanto ridícula, e é isso mesmo que a torna única. Com mais de 100 personagens para conhecer — desde toalhas até à consola de jogos — e uma impressionante quantidade de conteúdo totalmente dublado e ilustrado, Date Everything transforma o quotidiano num desfile de personalidade, charme e, claro, romance.

Jogabilidade

A jogabilidade de Date Everything gira à volta dos Dateviators, uns óculos misteriosos que permitem ao protagonista interagir com os objectos da sua casa como se fossem seres vivos. No entanto, o termo ‘Date’ (sair com alguém) aqui é um acrónimo para ‘Reconhecer Directamente a Existência de uma Coisa’, o que alarga a definição do tipo de relações possíveis. É possível formar amizades, romances, ou até inimizades com qualquer um dos 100 personagens disponíveis numa só jogada. Estas interacções não são superficiais: cada personagem é totalmente dublada, com missões próprias, pequenas histórias e coleccionáveis. Cada conversa pode influenciar os atributos do protagonista — como Empatia, Carisma, Sagacidade, Inteligência ou Elegância — e essas estatísticas são essenciais para desbloquear certas etapas ou concretizar a materialização dos personagens no mundo real.

A progressão é gerida com um limite diário: o jogador pode interagir com cinco personagens por dia, até os Dateviators precisarem de recarregar. Isto cria um ritmo que incentiva a explorar gradualmente cada canto da casa e conhecer cada personalidade. Os finais variam consoante as relações que se constroem (ou destroem), e há conquistas para aqueles que conseguem completar o jogo amando ou odiando todos os objectos disponíveis.

Mundo e história

A história começa com um protagonista que perde o emprego no primeiro dia de trabalho remoto. Sem rumo, depara-se com um par de óculos misteriosos que lhe permitem comunicar com os objectos da sua casa. O resultado é uma espécie de reality show emocional passado num apartamento onde cada electrodoméstico, móvel ou acessório de higiene tem vida, desejos e uma personalidade vincada. Uns querem ser amados, outros apenas compreendidos, e há até quem prefira manter distância emocional.

O mundo de Date Everything não se limita ao apartamento físico. A narrativa é enriquecida com pequenas histórias sobre os desejos e sonhos dos objectos. Desde uma toalha que quer conhecer o mar, até um aspirador que precisa de apoio emocional, o jogo cria um ecossistema narrativo onde o humor serve de veículo para temas como autoaceitação, trauma e solidão. E se isto parece exagerado, o jogo equilibra o tom com uma leveza e comicidade que nunca se tornam maçadoras. Há também personagens secretas e até meta-narrativas que envolvem os próprios criadores do jogo, escondidos entre as opções para os mais atentos.

Grafismo

Visualmente, Date Everything aposta num estilo desenhado à mão que é simultaneamente expressivo e detalhado. Existem mais de 11 mil ilustrações únicas que dão vida aos objectos, com designs que combinam o realismo do objecto físico com elementos humanizados — olhos, expressões faciais, roupas, ou até pequenas animações sugestivas. Cada personagem tem uma estética distinta e reconhecível, o que torna a descoberta de novos elementos particularmente satisfatória. Os cenários, apesar de limitados ao interior de uma casa, são variados e bem caracterizados, com cada divisão a esconder uma nova surpresa. A direcção de arte é coesa, irreverente e cheia de criatividade. A sensação é de estar a folhear uma BD interactiva recheada de pormenores deliciosos. Além disso, os menus e o interface são funcionais e intuitivos, permitindo que o jogador se concentre naquilo que mais importa: as relações.

Som

É impossível falar de Date Everything sem destacar o seu elenco vocal. Com nomes como Ray Chase, Robbie Daymond, Max Mittelman, Matt Mercer e Ben Starr, cada objecto ganha uma identidade sonora memorável. Não há performances fracas, mesmo quando a personagem é, por exemplo, um bidé francês rapper chamado Jean Loo Pissoir. A entrega vocal oscila entre o melodramático e o hilariantemente absurdo, e é esse exagero que sustenta o charme do jogo. Há mais de 70 mil linhas de diálogo gravadas, e o trabalho dos actores é feito com um nível de compromisso raro neste género. A música de fundo é subtil e funcional, contribuindo para o ambiente sem se impor demasiado. Em muitos momentos, a dublagem e os efeitos sonoros são o verdadeiro motor emocional da experiência. É impossível não sorrir quando um pato de borracha vos dá um sermão, ou quando o vosso chuveiro decide cantar como Elvis.

Conclusão

Date Everything é um jogo que desafia expectativas e redefine o que pode ser um simulador de encontros. É fácil descartar a premissa como um simples gimmick, mas a verdade é que por trás da ideia insana de seduzir uma torradeira ou namorar um conjunto de pratos está um dos títulos mais criativos, inclusivos e carismáticos dos últimos anos. A longevidade é impressionante, com cerca de 80 horas de conteúdo para os completistas, e a rejogabilidade está assegurada pela quantidade de personagens, finais e decisões possíveis.

O humor, embora constante, nunca se sobrepõe à capacidade do jogo de tocar em temas sérios com uma leveza admirável. A acessibilidade é garantida com opções para evitar tópicos delicados, e o cuidado com a representação é notório. Se há algo que Date Everything prova, é que a indústria precisa de mais jogos dispostos a arriscar, a rir de si mesma e a abraçar o inesperado. No fim de contas, quem diria que beijar a máquina de café podia mesmo fazer-nos sentir melhor? Date Everything é, acima de tudo, uma celebração do absurdo e do afecto — e um lembrete de que até os objectos têm sentimentos… ou pelo menos, vozes muito boas.

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