Hideo Kojima é um dos criadores mais excêntricos e polarizantes da indústria dos videojogos. Depois do impacto que Death Stranding causou em 2019 — quer pela originalidade, quer pela estranheza — era difícil imaginar que a fórmula pudesse ser revisitável sem perder o seu efeito surpresa. Ainda assim, Death Stranding 2: On the Beach chega como uma prova de que há espaço para aprofundar e expandir esta experiência fora do comum. Kojima reescreveu o guião após a pandemia de Covid-19, e isso sente-se em cada detalhe do mundo, das personagens e da mecânica principal, elevando o conceito de solidão e interligação humana a um novo patamar simbólico.
Nesta nova entrada, voltamos a acompanhar Sam Porter Bridges numa nova missão de reconexão de uma civilização fragmentada, desta vez em territórios que evocam o México e a Austrália, mas que nos são apresentados de forma distorcida, surreal e onírica. Mais do que um jogo de ação ou exploração, Death Stranding 2 é uma obra meditativa, que funciona simultaneamente como sátira social, poesia visual e metáfora filosófica sobre a ligação humana. Pode parecer demasiado pretensioso ou esotérico, mas a verdade é que o jogo recompensa a contemplação com um nível de profundidade emocional e mecânica raramente visto no meio.
É um jogo que continua a ser sobre… entregar encomendas. Mas também é muito mais do que isso.
Jogabilidade
A jogabilidade de Death Stranding 2 é um exercício de paciência, precisão e planeamento, mas também de adaptação e improviso. À superfície, o núcleo mantém-se idêntico ao do primeiro título: Sam transporta carga entre locais distantes, através de terrenos hostis, enquanto enfrenta ameaças sobrenaturais e humanas. Mas o que poderia parecer repetitivo ou até enfadonho, revela-se viciante graças ao sistema de física, à gestão de peso, à construção de infraestruturas e à preparação minuciosa antes de cada viagem. O combate, que antes era uma faceta secundária, surge agora mais polido e integrado nas missões. Enfrentar BTs ou grupos hostis já não parece um incómodo, mas sim uma extensão natural do percurso, com mecânicas fluídas que tornam tanto a ação furtiva como os confrontos diretos recompensadores. As ferramentas ao dispor do jogador são vastas e variam de cordas e escadas a armas de fogo e granadas, permitindo adaptar o estilo de jogo ao terreno e aos desafios. Existe um prazer particular em planear um trajeto difícil, equipar os utensílios certos e ver esse plano resultar em movimento eficiente e fluído.
Além disso, a interação indireta com outros jogadores mantém-se como um dos pilares do jogo. Estruturas partilhadas, sinais, likes e pequenos gestos de solidariedade digital continuam a criar uma sensação de comunidade silenciosa e cúmplice, mesmo quando se joga completamente a solo. Curiosamente, esta funcionalidade acaba por ser uma crítica à própria superficialidade das redes sociais, com o mundo do jogo a encher-se de ícones piscantes e notificações que parodiam a atenção dispersa dos dias de hoje.

Mundo e história
Se no primeiro jogo o objetivo era ligar os Estados Unidos à Chiral Network, em Death Stranding 2 a missão é expandir essa rede para os territórios do México e da Austrália — ou versões estilizadas e quase irreconhecíveis destes. As paisagens misturam tundras islandesas, desertos multicoloridos e montanhas cobertas de neve, sem grande preocupação com coerência geográfica. Mas o que poderia parecer um erro de design transforma-se num dos trunfos da experiência: o mundo parece alienígena, mas internamente consistente, como um sonho recorrente onde tudo faz sentido à sua maneira.
A narrativa é, como seria de esperar num jogo de Kojima, densamente metafórica, repleta de personagens bizarras e situações poéticas. Sam, agora a viver em reclusão no México com Lou — a criança que transportava num útero artificial no primeiro jogo, agora uma menina pequena — é chamado de volta à ação por uma organização chamada Drawbridge. Fragile, uma das personagens mais marcantes do jogo anterior, lidera esta nova missão com o mesmo ar enigmático, e novos aliados e antagonistas surgem para compor um elenco digno de um filme de arte europeu.
Cada personagem é uma alegoria viva: Rainy, uma jovem que faz chover sempre que sai à rua; Tarman, um homem com uma mão de alcatrão que navega as correntes do oceano; Heartman, que morre e renasce ciclicamente. Podiam ser figuras absurdas, mas acabam por despertar empatia quando o guião lhes dá momentos de humanidade. Uma das cenas mais tocantes envolve Rainy e Tomorrow a cantar juntas, num momento de pureza que contrasta com o tom melancólico do mundo à sua volta. A história está profundamente marcada pelas reflexões pós-pandemia. A sensação de isolamento, a desconfiança face à mobilidade e o medo do contacto físico são explorados não só de forma narrativa, mas também mecânica e simbólica. Há uma melancolia constante na jornada de Sam, mas também um sentimento de propósito, de missão essencial numa sociedade fragmentada.
Grafismo
Visualmente, Death Stranding 2: On the Beach é deslumbrante. O motor Decima, da Guerrilla Games, continua a surpreender pela sua capacidade de renderização de ambientes vastos e hiper-realistas, mas também pela atenção aos detalhes mais subtis. A forma como a chuva altera a paisagem, como a luz se reflete nas poças, como os elementos naturais se fundem num conjunto coerente é absolutamente impressionante. O design das personagens é igualmente notável. Desde as vestes de Fragile, com as suas luvas estilo Greta Garbo animadas como mãos fantasmagóricas, até às expressões faciais detalhadas de Sam ou Rainy, tudo contribui para uma sensação de autenticidade emocional. As animações são suaves e expressivas, algo essencial num jogo que aposta tanto na linguagem corporal e no subtexto em vez de exposições diretas.
O mundo é estranho e fragmentado, sim, mas nunca incoerente. A construção de cenários quase alienígenas transmite a ideia de um planeta Terra irreconhecível, corroído por catástrofes sobrenaturais e abandonado à sua sorte. A variedade de biomas, mesmo dentro das mesmas zonas, confere à exploração um sabor constante de descoberta, mantendo o fascínio mesmo em viagens longas e solitárias.

Som
A componente sonora é, mais uma vez, um dos destaques da experiência. A banda sonora alterna entre momentos minimalistas e faixas marcantes de artistas como Low Roar e outros músicos atmosféricos. Estes temas entram de forma orgânica nas caminhadas, criando momentos de contemplação pura enquanto se atravessam montanhas, vales e desertos. O trabalho de vozes é de altíssimo nível, com destaque para Norman Reedus, Léa Seydoux e Elle Fanning, mas também para nomes como George Miller e Troy Baker, que regressa num papel particularmente intenso como Higgs. As interpretações são dignas de cinema, e mesmo as personagens mais estranhas conseguem transmitir emoções autênticas graças à direção de arte e às performances cuidadas.
Os efeitos sonoros reforçam a imersão. O som dos passos a atravessar diferentes superfícies, o eco dos vales, o ruído dos BTs à distância, tudo contribui para uma experiência sensorial envolvente. A música surge quase sempre em momentos cruciais, não como fundo constante, mas como comentário emocional ao que está a acontecer, criando um vínculo entre jogador e ambiente raro em videojogos.
Conclusão
Death Stranding 2: On the Beach é uma obra rara, que desafia convenções tanto na forma como na substância. Não é um jogo para todos os gostos — a sua cadência lenta, o simbolismo denso e o foco na logística podem afastar quem procura ação constante ou narrativas lineares. Mas para quem está disposto a abraçar o seu ritmo próprio, este é um dos títulos mais recompensadores dos últimos anos.
Kojima aprofunda aqui temas como a conexão humana, a solidão, o impacto da tecnologia e a resiliência individual, oferecendo uma experiência que é tão mecânica como filosófica. As melhorias em relação ao primeiro jogo são notórias: o combate está mais refinado, os ambientes mais ricos, as missões mais variadas. Mas é na sua coerência artística e na ousadia da sua visão que Death Stranding 2 realmente se destaca. No fundo, o jogo transmite uma mensagem poderosa: mesmo em tempos de catástrofe global, isolamento social e morte, a ligação entre seres humanos persiste. Pode ser mediada por tecnologia, por estruturas, por símbolos — mas nunca é destruída. E essa ideia, passada através de um simples gesto como entregar uma encomenda, torna-se numa das experiências mais emotivas e marcantes que os videojogos têm para oferecer.