Análise: American Arcadia

Num panorama onde a cultura pop é reciclada, remixada e celebrada até à exaustão, surge um jogo que tenta não apenas ser parte dessa festa, mas também questioná-la de forma divertida. American Arcadia é uma aventura narrativa que mistura géneros com a mesma ousadia com que mistura referências a décadas passadas, desde os anos 30 até à era moderna. Desenvolvido pela Out of the Blue, o mesmo estúdio que nos trouxe Call of the Sea, este título promete ação, humor, mistério e uma crítica velada ao poder mediático e à identidade num mundo onde tudo é espetáculo. Se a premissa soa exagerada, é porque o jogo o é – de forma intencional.

American Arcadia coloca-nos numa realidade alternativa onde uma cidade utópica retrofuturista serve, sem o conhecimento dos seus habitantes, como cenário para um reality show transmitido 24 horas por dia. O protagonista, Trevor Hills, é um cidadão aborrecidamente normal, e isso, neste mundo, é uma ameaça à sua sobrevivência. Num meio onde audiências mandam, os menos populares são eliminados. Felizmente para Trevor, há alguém a ver do outro lado do ecrã que decide ajudá-lo. Assim começa uma fuga que se desenrola tanto através da cidade artificial como no mundo real, alternando entre personagens, perspetivas e mecânicas de jogo.

Jogabilidade

American Arcadia divide-se essencialmente em dois estilos de jogabilidade, refletindo os dois protagonistas principais. Com Trevor, controlamos uma personagem num ambiente 2.5D com elementos de plataformas, furtividade e ação. São secções recheadas de corridas por corredores e esgotos, perseguições frenéticas e alguma resolução de puzzles ambientais. Trevor não sabe o que se passa à sua volta, e somos guiados pela voz de Angela, uma funcionária da corporação que o vigia e que decide desobedecer ao sistema. Já com Angela, a perspetiva muda para primeira pessoa, e a jogabilidade assume um ritmo mais pausado, focado em infiltração, exploração de ambientes e resolução de puzzles lógicos. Estas secções ocorrem fora da cidade-domo e introduzem elementos modernos, desde hacking até sabotagem de atrações temáticas. A transição entre personagens é fluida e bem integrada na narrativa, permitindo ao jogador viver dois lados da mesma história com abordagens distintas.

O jogo utiliza estas mudanças para criar situações originais, onde, por exemplo, jogamos com Trevor enquanto Angela, através das câmaras de vigilância, destranca portas ou manipula equipamentos. Em teoria, estas mecânicas são interessantes e inovadoras. Na prática, alguns momentos exigem uma execução precisa que pode tornar-se frustrante. Durante perseguições, a margem de erro é pequena e a repetição das mesmas falas e ações pode quebrar o ritmo. A utilização de comandos diretos e múltiplas ações em simultâneo pode tornar certos trechos cansativos, sobretudo se não percebermos de imediato o que o jogo espera de nós.

Mundo e história

A narrativa de American Arcadia é o seu maior trunfo. Ainda que não particularmente profunda, é envolvente, cheia de reviravoltas, referências e personagens carismáticas. A cidade de Arcadia é uma réplica exagerada de uma América idealizada dos anos 70, mas recheada de tecnologia anacrónica e controlo absoluto por parte de uma megacorporação mediática. Os seus habitantes vivem vidas aparentemente perfeitas, sem saberem que são figurantes involuntários de um programa de televisão global. Trevor Hills é a encarnação do homem comum – demasiado normal para sobreviver num mundo onde o entretenimento rege tudo. A sua ignorância face ao que se passa em redor contrasta com a determinação de Angela, que assume o papel de hacktivista infiltrada no sistema. Esta dinâmica de contraste funciona bem, dando ao jogo uma estrutura de thriller com toques de comédia e sátira social. As inspirações são claras, desde O Show de Truman a Black Mirror, passando por referências subtis a filmes, literatura e cultura televisiva americana. Apesar do ritmo acelerado, o argumento nem sempre consegue manter coerência. A dada altura, o enredo parece perder o foco, com demasiadas linhas narrativas que não convergem de forma satisfatória. O final, embora funcional, carece do impacto emocional que a história parecia prometer. Ainda assim, a viagem até lá é suficientemente divertida para compensar algumas das suas falhas.

Grafismo

Visualmente, American Arcadia é um jogo vibrante e estilizado. A estética retrofuturista da cidade é um dos seus pontos mais fortes, misturando arquitetura típica dos anos 70 com tecnologias como drones, robôs de limpeza e ecrãs omnipresentes. As cores saturadas, o design exagerado e os pequenos detalhes espalhados pelos cenários dão vida a uma cidade artificial mas credível. Mesmo nas secções de Trevor, onde o movimento é lateral e mais limitado, há sempre algo interessante a acontecer em segundo plano – seja uma festa na piscina de um terraço, seja um grupo de figurantes a representar uma cena do quotidiano. Tudo é pensado para criar a sensação de um palco televisivo contínuo. As animações são suaves e há uma atenção clara ao detalhe, ainda que o estilo seja mais ilustrativo do que realista. As secções com Angela têm um visual mais discreto e moderno, com escritórios, corredores e bastidores frios e funcionais. Esta mudança de ambiente serve como contraponto visual e temático, reforçando a dualidade entre a fantasia de Arcadia e a realidade crua do exterior.

Som

O trabalho sonoro em American Arcadia está bem conseguido, com particular destaque para a dobragem. As vozes de Trevor e Angela são convincentes, e o diálogo entre ambos, apesar de por vezes exagerado ou redundante, tem um tom leve e carismático que mantém o jogador investido. Há um certo exagero nos arquétipos das personagens secundárias, mas isso encaixa bem no tom satírico da narrativa. A música cumpre o seu papel, variando entre temas cinematográficos mais tensos nas perseguições e melodias descontraídas ou nostálgicas nas secções de exploração. Não é uma banda sonora memorável, mas ajuda a reforçar a atmosfera de cada momento. Os efeitos sonoros são competentes, com ambientes bem construídos tanto nos cenários urbanos como nos bastidores da corporação. Um pequeno ponto negativo é a repetição de falas e sons em segmentos onde o jogador falha e tem de repetir ações. Ouvir as mesmas linhas vezes sem conta pode quebrar a imersão e tornar-se irritante, especialmente nas partes mais exigentes em termos de tempo de reação.

Conclusão

American Arcadia é um jogo ambicioso que tenta fazer muita coisa ao mesmo tempo. Mistura géneros, estilos visuais, perspetivas e temas, e embora nem sempre consiga dar profundidade a tudo o que aborda, fá-lo com um charme e entusiasmo difíceis de ignorar. A crítica ao entretenimento moderno, à vigilância e à cultura da popularidade é clara, ainda que tratada com leveza e algum exagero propositado. A jogabilidade é variada e criativa, mas por vezes frustrante, especialmente nas sequências que exigem precisão e timing apertado. A história é cativante, mesmo quando perde alguma clareza, e os protagonistas são suficientemente carismáticos para manter o interesse. Visualmente, o jogo brilha com uma estética retrofuturista que é ao mesmo tempo familiar e bizarra, enquanto o som e as vozes ajudam a dar vida ao mundo artificial de Arcadia. No final, American Arcadia sente-se como uma montanha-russa de parque temático: não é particularmente profunda nem transforma a forma como vemos os videojogos, mas proporciona uma experiência divertida, original e bem embalada. Para quem aprecia uma boa narrativa recheada de referências culturais e não se importa com alguns tropeços mecânicos, é uma viagem que vale a pena fazer.

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