Deck of Haunts é um daqueles jogos cujo conceito, só por si, desperta a curiosidade imediata. Um deckbuilder roguelike onde o jogador não controla heróis, vilões ou monstros, mas sim uma casa assombrada faminta por sanidade humana. O ponto de partida é tão diabólico quanto intrigante: e se, em vez de fugir de uma casa assombrada, fosses tu a casa? O jogo desenvolvido pela Mantis e publicado pela DANGEN Entertainment aposta tudo numa ideia original que mistura mecânicas de cartas, construção de salas e uma boa dose de humor negro. Apesar de não reinventar nenhuma das suas peças individualmente, a forma como as combina é suficientemente distinta para merecer atenção.
A versão que tivemos oportunidade de experimentar foi a de PC via Steam, e embora o jogo ainda exiba algumas arestas por limar, a verdade é que há aqui um potencial evidente. A atmosfera está bem construída, a jogabilidade oferece espaço para experimentação criativa e o conceito de crescimento orgânico da casa, carta a carta, sala a sala, é viciante. No entanto, também há desequilíbrios notórios, alguma repetição e falta de estrutura a longo prazo, que impedem Deck of Haunts de atingir o patamar de excelência. Ainda assim, é uma proposta diabólica que merece destaque entre os fãs de roguelikes e jogos de cartas.
Jogabilidade
No centro da experiência de Deck of Haunts está a combinação entre construção de um baralho e expansão de uma casa maldita. Cada nova tentativa começa com um núcleo: a câmara do coração da casa, dois corredores e duas divisões. A tua missão é impedir que os visitantes humanos cheguem até esse coração, ao mesmo tempo que os manténs no interior da casa o tempo suficiente para os corromper, enlouquecer ou eliminar. Os humanos vão surgindo noite após noite, cada vez mais difíceis de derrotar, com habilidades e comportamentos distintos que obrigam a repensar constantemente a tua estratégia.
O jogo decorre ao longo de 28 noites, e cada noite traz novos desafios. Existem vários tipos de humanos com traços únicos: uns carregam lanternas que reduzem os seus níveis máximos de tensão, outros conseguem mover-se por duas salas em simultâneo, e há até polícias capazes de arrombar portas. Para os confrontar, tens à disposição cartas que drenam sanidade, causam dano direto ou aumentam o nível de tensão dos invasores. Algumas cartas só funcionam em humanos isolados, outras afetam todos os ocupantes de uma divisão. A componente estratégica é profunda e exige planeamento constante. Durante a partida, vais adquirindo novas cartas e novas divisões para a casa. Estas últimas variam entre espaços normais e salas com efeitos especiais: cozinhas que se transformam em salas de espelhos, salas de armas que duplicam o dano infligido, ou altares onde podes sacrificar cartas por pontos de ação adicionais. A aprendizagem é feita na prática: perderás várias vezes por não teres reparado que um humano estava protegido contra mais de quatro pontos de dano por ataque, por exemplo. Mas é essa curva de aprendizagem que torna cada run mais interessante do que a anterior.

Mundo e história
Deck of Haunts não oferece uma narrativa detalhada nem grande contextualização. Após um breve tutorial que explica o essencial, o jogador é deixado à solta, sem explicações nem uma história propriamente dita a seguir. Não há campanha nem desenvolvimento de personagens. É uma escolha que pode dividir opiniões: por um lado, contribui para o ritmo rápido e rejogabilidade do título; por outro, perde-se a oportunidade de explorar uma mitologia própria ou construir uma narrativa envolvente à semelhança do que jogos como Dungeon Keeper conseguiram no passado. Ainda assim, o jogo constrói um mundo através da sua temática. A casa assombrada que tudo devora é uma metáfora viva, pulsante, onde cada sala tem personalidade, e onde os visitantes representam a constante invasão da humanidade naquilo que deveria permanecer esquecido. Os elementos sobrenaturais estão presentes em todos os detalhes, desde os efeitos das cartas até aos comportamentos dos humanos. Existe um tom cómico e macabro que atravessa toda a experiência, e mesmo sem lore explícito, é fácil imaginar a história que se desenrola por trás de cada confronto. A ausência de progressão persistente também limita o sentimento de evolução. Não há desbloqueios claros nem caminhos de upgrades visíveis. Supõe-se que ao subir de nível se desbloqueiam novas cartas e salas, mas o jogo nunca o confirma de forma direta. Esta falta de feedback sobre o progresso entre runs é uma das fragilidades mais notórias da experiência.
Grafismo
Visualmente, Deck of Haunts acerta em cheio na sua proposta. A estética é uma mistura bem equilibrada entre o grotesco e o caricatural, criando um ambiente que é simultaneamente sombrio e divertido. As divisões da casa são bem desenhadas, cada uma com elementos únicos e uma identidade visual própria. O jogo consegue transmitir a sensação de um organismo vivo, corrompido e em constante mutação. Há um brilho espectral em algumas salas, figuras fantasmagóricas que se movem entre os corredores e pequenas animações que enriquecem o ambiente sem nunca o tornarem demasiado caótico.O design dos humanos também é interessante, ainda que mais funcional do que expressivo. É fácil distinguir os diferentes tipos de invasores, o que é essencial para a leitura rápida do jogo, mas falta talvez alguma variedade estética adicional à medida que as noites avançam. A interface é clara e bem organizada, o que facilita a gestão das cartas e das divisões. As animações associadas ao uso de cartas são simples mas eficazes, reforçando a sensação de impacto de cada jogada. Um dos detalhes visuais mais marcantes é ver os humanos completamente drenados, encolhidos na posição fetal, balançando-se de forma perturbadora antes de serem executados. É um toque sádico que condiz bem com o tom geral do jogo e reforça a identidade malévola da casa.

Som
A componente sonora de Deck of Haunts é subtil mas eficaz. Não há banda sonora constante, o que contribui para uma sensação de isolamento e tensão. Em vez disso, o jogo aposta em sons ambientais para criar atmosfera: o barulho das cartas a serem jogadas, arranhões, passos, pancadas e gemidos distantes. Estes efeitos constroem uma presença auditiva constante da casa, quase como se ela própria respirasse e se alimentasse da energia dos intrusos. É uma escolha acertada, que reforça o tom de horror psicológico sem cair na tentação de recorrer a música assustadora genérica. A ausência de trilha sonora convencional faz com que cada som se destaque mais, criando momentos de silêncio inquietante e pequenas explosões de som que acompanham as ações do jogador. Se há algo a apontar, talvez fosse interessante incluir efeitos sonoros distintos para diferentes tipos de salas ou ações mais intensas, de forma a enriquecer ainda mais a paleta sonora. No geral, a componente sonora serve muito bem o propósito de imersão e contribui para a sensação constante de que algo profano está prestes a acontecer. É um ambiente auditivo que não pretende assustar com jumpscares, mas sim enervar e corroer lentamente.
Conclusão
Deck of Haunts é uma lufada de ar fresco no panorama dos roguelikes e dos deckbuilders. O conceito de jogares como uma casa assombrada que se alimenta da sanidade e da vida de humanos incautos é simultaneamente hilariante e perverso. A execução das ideias centrais é sólida, com um sistema de cartas que permite criar combinações criativas e devastadoras, e uma estrutura de jogo que promove a experimentação constante. A atmosfera está bem conseguida, com um estilo visual que casa perfeitamente com o tom do jogo e um trabalho sonoro discreto mas competente. No entanto, nem tudo é assombração perfeita. A ausência de uma campanha ou qualquer estrutura narrativa mais densa deixa um vazio que podia ser preenchido com bastante facilidade. A progressão entre runs é pouco clara e pouco recompensadora, o que reduz o incentivo à repetição. Além disso, o sistema de salas, embora cheio de potencial, acaba por oferecer poucas opções viáveis a longo prazo, com algumas estratégias claramente superiores a outras, o que limita a diversidade das construções. Apesar dessas falhas, é difícil não recomendar Deck of Haunts a quem gosta de jogos de cartas, de construção estratégica e de humor negro. É um daqueles jogos que merecia mais investimento e talvez uma sequela que levasse a ideia até ao inferno e de volta. Como está, é um pequeno demónio poderoso, mas incompleto, que consegue entreter, desafiar e perturbar. E se alguma vez for transformado numa atração de parque temático, certamente não quererás perdê-lo.