Análise: Kiborg

O género roguelike tem vindo a afirmar-se como um dos mais férteis e experimentais dentro do panorama dos videojogos independentes. Desde variações baseadas em cartas a títulos focados em plataformas ou combate tático, há algo de profundamente viciante no ciclo de tentativa e erro aliado a uma progressão persistente. Kiborg, desenvolvido pelo estúdio russo Sobaka Studio, é um desses projetos ambiciosos que tenta fundir o ADN dos beat ‘em ups clássicos com a estrutura aleatória e punitiva de um roguelite. O resultado é um jogo brutal, caótico e mecanicamente envolvente, ainda que com algumas arestas visuais por limar. O jogo não reinventa a roda, mas distingue-se pela forma como mistura sistemas familiares, criando uma experiência frenética e com uma longevidade assente na diversidade de construções possíveis.

Inspirado por obras distópicas como The Running Man de Stephen King, Kiborg mergulha o jogador num cenário sombrio onde a violência é entretenimento e a sobrevivência, um espetáculo. Não é um jogo acessível nem visualmente impressionante, mas tem um coração mecânico bem afinado e um sistema de progressão que recompensa a perseverança. Quem estiver disposto a ultrapassar uma curva de dificuldade inicial bastante agreste, poderá encontrar aqui um dos roguelikes mais agressivos e intensos dos últimos tempos.

Jogabilidade

No seu núcleo, Kiborg é um beat ‘em up acelerado onde o jogador enfrenta ondas sucessivas de inimigos em espaços fechados e claustrofóbicos. Os combates são rápidos, sangrentos e exigem adaptação constante. O protagonista, Morgan Lee, recorre a um arsenal diversificado que inclui armas de fogo, armas brancas e os seus próprios punhos. A munição é escassa e as armas corpo-a-corpo partem-se após alguns golpes, o que obriga a uma gestão constante dos recursos disponíveis e a um estilo de jogo extremamente reativo. O sistema de combate corpo-a-corpo é particularmente satisfatório, com ataques leves, pesados e giratórios que podem ser encadeados em combos devastadores. A mecânica de parry adiciona uma camada de risco-recompensa interessante: se bem executado, permite atordoar os inimigos e causar dano adicional, mas exige um timing muito preciso. Já o tiroteio é menos polido, especialmente nas fases iniciais em que o jogador ainda não desbloqueou melhorias que tornem as armas mais precisas e eficazes. Felizmente, a variedade de ferramentas ofensivas e a constante pressão para improvisar tornam cada combate dinâmico e imprevisível.

O verdadeiro trunfo de Kiborg, porém, reside na sua impressionante profundidade de personalização. O jogo oferece dezenas de implantes cibernéticos que alteram não só as habilidades do jogador como também o seu aspeto visual. Alguns permitem reviver após a morte, outros invocam trilhos de fogo ou aliados temporários. A escolha dos implantes é estratégica, uma vez que pertencem a classes distintas e podem oferecer bónus adicionais se combinados corretamente. Para além disso, há modificações que obrigam a sacrificar uma estatística para melhorar outra, criando dilemas constantes e forçando o jogador a adaptar-se ao seu próprio estilo de jogo.

Cada nova tentativa é uma oportunidade para experimentar uma construção diferente, e a árvore de habilidades persistente permite desbloquear melhorias permanentes entre runs. Desde aumentos de vida inicial a redução de recuo nas armas, estas melhorias fazem com que cada tentativa seguinte seja ligeiramente mais exequível do que a anterior. No entanto, a progressão inicial pode parecer excessivamente lenta, e muitos jogadores sentir-se-ão frustrados nas primeiras horas até conseguirem ultrapassar o primeiro grande boss.

Mundo e história

A narrativa de Kiborg não é o foco principal do jogo, mas serve como uma moldura eficaz para o caos mecânico que o define. O protagonista, Morgan Lee, é um prisioneiro injustamente condenado que aceita participar num jogo televisivo mortal em troca da sua liberdade. É um cenário distópico familiar, com claras influências de obras de ficção científica clássica, onde o sofrimento humano é transformado em espetáculo. A prisão onde decorre a ação é uma instalação brutal e desumanizante, onde os reclusos são colocados uns contra os outros como gladiadores modernos. A história avança de forma discreta, através de pequenos fragmentos narrativos e da progressão visual do personagem, que se vai tornando cada vez mais cibernético a cada implante instalado.

Não há grandes momentos de desenvolvimento ou personagens secundárias marcantes, mas a atmosfera geral é coerente e eficaz. Há um sentimento constante de desespero e urgência, reforçado pela brutalidade dos combates e pela imprevisibilidade dos inimigos. O objetivo final é alcançar uma nave de fuga no topo da prisão, mas esse caminho é bloqueado por bosses formidáveis e arenas cada vez mais perigosas. Ainda que a narrativa não seja particularmente profunda ou inovadora, cumpre o seu papel de contextualizar a violência e justificar a estrutura roguelike. Há um tom de crítica social latente, especialmente na forma como o jogo representa a exploração da violência como forma de entretenimento, mas nunca é desenvolvido de forma aprofundada. Em última análise, a história de Kiborg é funcional e coesa, mas não será o principal motivo pelo qual os jogadores continuarão a regressar ao jogo.

Grafismo

É aqui que Kiborg mais tropeça. Embora os screenshots possam dar a ilusão de um jogo visualmente moderno, a realidade é que os modelos de personagens e os ambientes parecem saídos de uma geração anterior. As texturas são pouco detalhadas, as animações algo rígidas e o design dos cenários repete-se frequentemente. Não há grande variedade ambiental e, especialmente nas primeiras horas, o jogador é forçado a repetir áreas como pátios prisionais e estações de comboio abandonadas vezes sem conta. Isto não quer dizer que o jogo seja feio ou inexpressivo, mas está claramente limitado por recursos técnicos e orçamentais. É visível que houve esforço para dar personalidade ao mundo, mas esse esforço nem sempre resulta em ambientes memoráveis. Onde o grafismo ganha pontos é na forma como os implantes afetam visualmente o protagonista, transformando-o progressivamente num verdadeiro ciborgue. Esta evolução visual é subtil mas eficaz, e reforça a sensação de progressão física e mecânica.

No geral, os visuais cumprem o mínimo necessário para suportar a jogabilidade, mas estão longe de impressionar. Para um título indie, é compreensível, mas os jogadores que valorizam fortemente o aspeto gráfico poderão ficar desapontados.

Som

O trabalho sonoro em Kiborg é competente e funcional, ainda que pouco memorável. Os efeitos sonoros de combate são satisfatórios, com impacto suficiente para tornar cada golpe credível. O som das armas, tanto brancas como de fogo, tem peso, e há pequenos detalhes auditivos que ajudam a transmitir a tensão constante dos confrontos. A banda sonora, por sua vez, segue uma linha industrial e agressiva, adequada ao cenário distópico do jogo. No entanto, falta-lhe variação e presença. Raramente se destaca ou contribui ativamente para a atmosfera. Em muitos momentos, o som parece servir apenas de pano de fundo, sem interferir ou elevar a ação que se desenrola no ecrã. Também não há grande presença de vozes ou diálogos expressivos. A história é contada de forma minimalista e o som acompanha essa abordagem. No entanto, não compromete a experiência geral e cumpre o seu papel de forma discreta.

Conclusão

Kiborg é um jogo que aposta tudo na jogabilidade e na profundidade dos seus sistemas, deixando para segundo plano os aspetos audiovisuais e narrativos. O combate é intenso, satisfatório e cheio de pequenas decisões táticas. A variedade de implantes, modificações e estilos de jogo possíveis faz com que cada tentativa seja única, e a árvore de progressão garante que mesmo os fracassos contribuem para o sucesso futuro. No entanto, os visuais datados e a curva de dificuldade inicial extremamente ingrata podem afastar alguns jogadores antes que descubram o verdadeiro valor do jogo. A quem tiver paciência para persistir nas primeiras horas difíceis, Kiborg recompensa com uma experiência viciante e cheia de potencial. Não é um jogo para todos, mas para os fãs de roguelikes que procuram algo diferente, é uma aposta a considerar.

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