O género dos jogos FMV (Full Motion Video) tem vivido um discreto renascimento nos últimos anos, mas poucas obras se destacam verdadeiramente neste meio tão peculiar. Paul Raschid é um dos nomes que se tem vindo a afirmar como referência, com títulos como Five Dates, Ten Dates e The Complex. Desta vez, o autor surge com uma proposta mais intimista e independente através de Hello Stranger, um jogo auto-publicado que surpreende pela sua coesão e qualidade, mesmo tratando-se de uma experiência relativamente curta. Com cerca de 40 minutos por sessão, Hello Stranger é um thriller interativo que nos prende pela sua história focada em tecnologia, inteligência artificial e o lado mais sombrio das relações online.
Jogabilidade
Hello Stranger destaca-se pela sua abordagem interactiva que não se limita a ser apenas um filme com escolhas ocasionais. Apesar da curta duração de cada sessão, o jogo compensa com múltiplos caminhos narrativos e finais distintos, o que incentiva múltiplas jogadas. O jogador assume o controlo de Cam, uma personagem que vive quase exclusivamente com o apoio da tecnologia, incluindo um assistente de voz que gere todos os aspetos da sua casa. A base da jogabilidade assenta nas decisões que vamos tomando em momentos-chave, que alteram radicalmente o desenrolar dos eventos. Para além da habitual escolha de diálogos, Hello Stranger introduz mini-jogos que dependem diretamente das nossas decisões. A variedade inclui desafios em estilo arcade, puzzles matemáticos e até questionários sobre excertos de filmes. Esta diversidade quebra a monotonia e reforça a sensação de que estamos mesmo a interagir com algo mais do que apenas um filme com pausas para clicar. É também possível saltar cenas já vistas em novas jogadas, facilitando a exploração de diferentes ramos narrativos sem a frustração de rever sempre o mesmo conteúdo.

Mundo e história
Cam é um freelancer moderno, completamente dependente da tecnologia que o rodeia. Vive só, trabalha a partir de casa e comunica com o mundo maioritariamente através do ecrã. Um dia, decide experimentar uma aplicação chamada Hello Stranger, semelhante à antiga Chat Roulette, onde utilizadores são ligados aleatoriamente em videochamadas. O que começa como uma experiência banal transforma-se rapidamente num pesadelo psicológico quando Cam se vê envolvido num jogo onde as consequências podem ser fatais. A estrutura narrativa é engenhosa e bem construída, conseguindo criar tensão crescente mesmo dentro do espaço limitado de um único apartamento. A presença de várias personagens estranhas e desconcertantes, com destaque para uma mulher que tenta fazer uma análise psicológica a Cam ou um adolescente a tentar parecer cool enquanto a mãe lhe grita para ir jantar, acrescenta uma dimensão surreal e quase perturbadora à experiência. À medida que a história se desenrola, surgem reviravoltas inesperadas que mantêm o jogador em alerta constante.
Grafismo
Sendo um FMV, Hello Stranger depende inteiramente da qualidade das suas filmagens e do ambiente visual criado através da câmara e da edição. Neste campo, Paul Raschid volta a demonstrar grande competência. A realização é cuidada, os enquadramentos são eficazes e há uma atenção clara aos detalhes visuais que contribuem para a atmosfera geral do jogo. Mesmo decorrendo praticamente todo dentro do apartamento de Cam, nunca sentimos que o cenário se torna monótono. A interface do jogo é limpa e intuitiva, não interferindo com a imersão nas sequências de vídeo. Os mini-jogos apresentam um estilo visual simples mas funcional, contrastando com o realismo do vídeo mas sem quebrar a coerência estética do conjunto. No fundo, tudo está pensado para não tirar o foco da narrativa, mas ainda assim oferecer o suficiente para manter o envolvimento do jogador.

Som
O trabalho sonoro em Hello Stranger é subtil mas eficaz. Os efeitos sonoros ajudam a criar tensão nos momentos certos, e a música, embora discreta, é competente no apoio emocional à narrativa. No entanto, é o desempenho vocal que mais se destaca neste aspeto. Os atores entregam performances convincentes e longe do exagero teatral que por vezes ainda se associa aos jogos FMV. O elenco é um dos trunfos de Hello Stranger. Conta com nomes como Laura Whitmore e Derek Jacobi, que emprestam credibilidade e presença às suas personagens. Também George Blagden, Danny Griffin e Kulvinder Ghir contribuem com atuações sólidas, ajudando a criar um elenco coeso e envolvente. Esta qualidade interpretativa é fundamental num jogo deste tipo, e aqui está presente do início ao fim.
Conclusão
Hello Stranger é uma excelente adição ao catálogo de Paul Raschid e um marco notável no género FMV. Embora a curta duração de uma só sessão possa parecer limitadora, a estrutura ramificada e a variedade de caminhos e finais possíveis garantem uma longevidade assinalável para quem se deixar envolver. A mistura de narrativa interativa, mini-jogos e interpretações de qualidade elevam este projeto muito para além do que se espera de um jogo independente. A exploração de temas como dependência tecnológica, vigilância e a desumanização das interações online é feita com inteligência e um toque de suspense que prende o jogador ao ecrã. Não é apenas um bom jogo FMV — é uma experiência interativa memorável que demonstra o potencial do género quando está nas mãos certas. Com Hello Stranger, Paul Raschid reforça a sua posição como um dos nomes mais interessantes a trabalhar no cruzamento entre cinema e videojogo. Se gostas de experiências narrativas intensas, com uma forte componente de escolha e consequências, este é um jogo que não deves deixar passar.