Análise: Absolum

Absolum surge como uma das mais refrescantes fusões entre o beat’em up clássico e a estrutura roguelike moderna, recuperando a essência dos arcades para a reinterpretar através de um ritmo de progressão contínua, runs distintas e uma profundidade mecânica inesperada. Desenvolvido pela Guard Crush Games, estúdio reconhecido pelo seu trabalho em Streets of Rage 4, este título abandona a estética urbana e aposta num universo de fantasia fortemente inspirado em clássicos como Golden Axe. O resultado é um jogo que respira energia, cor, brutalidade e surpresa, combinando a agressividade visceral dos confrontos com a sensação constante de descoberta que define os melhores roguelikes.

O que faz Absolum destacar-se não é apenas a sua competência técnica, mas a forma como revitaliza o beat’em up sem comprometer a identidade do género. Em vez de ser apenas mais um título que mistura pancadaria com geração procedural, Absolum entende por completo o apelo dos dois géneros e constrói um equilíbrio notável entre repetição e variedade, entre maestria mecânica e improvisação. E, acima de tudo, oferece uma aventura que se quer revisitada, run após run.

Jogabilidade

O coração de Absolum é o seu sistema de combate, e talvez o maior elogio que lhe posso fazer é dizer que tem a mesma precisão, força e impacto de um bom jogo de luta. Nada aqui é aleatório ou frouxo. Cada golpe acerta com peso, cada esquiva tem timing apertado e cada inimigo exige leitura. O jogo recompensa sobretudo variedade: o medidor de combo não quer que repitamos ataques, quer que combinem ligeiros, pesados, arremessos, contra-ataques e movimentos de mobilidade.

Embora funcione como um beat’em up, Absolum oferece uma amplitude de decisões mais semelhante a um action-RPG leve. Os inimigos atacam em grupo, pressionam zonas específicas do ecrã e obrigam a usar o espaço de forma inteligente. A gestão de multidões é quase tão importante como a execução individual.

As quatro personagens jogáveis reforçam esta variedade. Galandra, a espadachim equilibrada, representa a curva de aprendizagem tradicional, com mobilidade moderada e ataques diretos que ensinam as bases. Karl funciona como tanque móvel, com ataques de curto alcance mas explosivos, excelente para quem gosta de pancada pesada. Cider é provavelmente a personagem mais sofisticada: extremamente móvel, veloz e perfeita para jogadores que preferem entrar e sair rapidamente do campo de batalha. Por fim, Brome é o mago-sapo, focado em ataques à distância e construções de magia que exigem planeamento e leitura do posicionamento.

A grande curva mecânica, porém, surge nos Rituais. Cada run oferece um conjunto de habilidades mágicas aleatórias que podem alterar radicalmente o estilo de jogo. Rituais que criam trilhos de fogo ao desviar, que acumulam eletricidade até rebentar num raio massivo, que prendem inimigos num tornado, que evocam mortos-vivos ou que plantam torres de espinhos que disparam sozinhas. E o mais impressionante é que muitos destes efeitos combinam entre si, permitindo criar builds que parecem verdadeiramente únicas. Um tornado de fogo, uma chuva de punhais, uma tempestade elétrica que se espalha pela arena: Absolum quer que experimentemos e recompensa-nos sempre que arriscamos.

Somando a isto, temos os Amuletos, pequenas melhorias compradas ao longo da run que incentivam esquivas perfeitas, contra-ataques, combos extensor ou gestão mais refinada da stamina. Tudo isto dá ao combate uma profundidade que raramente vemos no género.

Mundo e história

Absolum não tenta reinventar a narrativa de fantasia, mas executa-a com detalhe e subtileza suficientes para criar um universo credível. Talamh é um mundo onde a magia foi banida após um grande cataclismo, e o Rei Sol Azra governa com autoridade férrea enquanto utiliza secretamente essa mesma magia para controlar os rebeldes. Aqui entramos nós, um pequeno grupo de feiticeiros desorganizados que, apoiados pela Mãe Raiz Uchawi, tentam derrubar a tirania.

É uma premissa simples, mas Absolum distingue-se pelo tom. A magia é tratada não como ciência, mas como força selvagem, misteriosa e imprevisível. Não é totalmente compreendida por ninguém, e isso cria um contraste interessante entre os rebeldes, ligados à natureza, e o império de Azra, industrializado, metálico e controlador. Não existe grande neutralidade moral: libertar magia é perigoso, e o jogo faz questão de mostrar isso.

A exploração em Talamh segue caminhos ramificados, que se dividem e voltam a cruzar-se numa tapeçaria de regiões com culturas próprias. Cada área tem habitantes, costumes, perigos ambientais, montadas e inimigos distintos. Goblins, homens-lagarto, plantas vivas, esqueletos guerreiros e soldados imperiais guardam caminhos alternativos que podem esconder loot, novos aliados, missões secundárias ou personagens que se juntam à base.

Estas missões secundárias, aliás, são um dos grandes trunfos do jogo. Muitas não são concluídas numa única run. Outras deixam pistas subtis, indicando que um determinado objectivo requer seguir por uma rota específica num próximo percurso. A sensação de descoberta é permanente, e Absolum mantém constante a promessa de que há sempre mais um segredo logo ali.

Grafismo

O estilo visual de Absolum é impressionante. A arte 2D tem um charme artesanal, com personagens expressivas, animações suaves e cenários que parecem pintados à mão. Há uma identidade fortemente outonal na paleta de cores: dourados, castanhos, vermelhos e verdes escuros que evocam madeira antiga, folhas caídas, lume brando e mistério natural. Esta estética reforça a sensação de um mundo em mudança, permeado por magia esquecida e pelas marcas de um tempo que se perdeu.

O contraste visual entre os rebeldes e o império de Azra também é notável. A tecno-magia do inimigo tem tons metálicos, formas angulares, luzes artificiais e um peso opressor. Já os rebeldes apresentam cores orgânicas, movimentos fluídos e formas próximas da natureza. Este choque estilístico dá força espiritual ao conflito e ajuda a narrativa a destacar-se sem precisar de longas explicações.

Som

A banda sonora de Absolum complementa a estética de forma quase perfeita. Mistura melodias tribais com elementos eletrónicos subtis, acompanhando tanto a magia selvagem quanto a opressão mecânica do império. Os temas de combate são energéticos e ritmados, mas mantêm um tom melancólico que reforça o espírito outonal do jogo.

Os efeitos sonoros são de qualidade exemplar, especialmente no combate: cada pancada soa com impacto, cada esquiva perfeita acompanha-se de um estalar limpo, cada ritual mágico tem um efeito único que reforça a diversidade das builds. As vozes, poucas mas expressivas, ajudam a dar personalidade às personagens. Cider, em particular, destaca-se com frases divertidas e bem interpretadas.

Conclusão

Absolum é uma das mais fortes surpresas do género beat’em up dos últimos anos e um dos roguelikes mais confiantes da sua geração. A fusão entre repetição arcade e progressão moderna resulta em runs sempre distintas, sempre recompensadoras e sempre envolventes. O combate é profundo sem ser inacessível, o mundo é rico sem ser pesado e a variedade de escolhas garante que cada sessão traz algo novo.

A Guard Crush Games conseguiu não apenas homenagear a história do beat’em up, mas levá-lo a um lugar onde se sente renovado e relevante. Absolum não é apenas mais um roguelike: é uma reinvenção segura, carismática e cheia de personalidade, que mostra como o género pode continuar a evoluir.

É uma aventura que queremos repetir. Uma e outra vez. Até que o Rei Sol caia. E mesmo depois disso.

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