Há jogos que tentam contar histórias de forma tradicional, seguindo uma estrutura linear previsível. E depois existem experiências como Hymer 2000, que escolhem desconstruir essa estrutura e reconstruir algo profundamente diferente. Este título independente parte de uma premissa simples, quase banal: reclicar uma unidade de inteligência artificial obsoleta. Mas, à medida que nos afundamos neste computador fantasma, percebemos que Hymer 2000 é muito mais do que a tarefa técnica que nos é atribuída. É uma viagem melancólica, fragmentada e profundamente humana sobre o que resta quando a sociedade decide quem merece ser visto e quem deve ser esquecido.
Assumimos o papel de Frank, um especialista em reciclagem, encarregado de desmantelar a IA que outrora administrou o Hope Residence, uma instituição para pessoas consideradas descartáveis pelo sistema. Ao descobrirmos que a memória de Hymer está corrompida, somos puxados para um processo de restauração que abre portas para uma história onde o avanço tecnológico convive com desigualdades profundamente retrógradas. Hymer 2000 apresenta-se como uma peça interactiva pequena, mas carregada de densidade emocional, e que rapidamente nos faz perceber que a sua simplicidade estética esconde algo muito maior.
Jogabilidade
A estrutura jogável de Hymer 2000 afasta-se por completo do habitual. Não controlamos uma personagem num espaço tridimensional, não exploramos cenários nem combatemos inimigos. Tudo é mediado por uma interface de computador que remete para finais dos anos 80: janelas simples, texto monocromático, aplicações minimalistas. Esta escolha transporta-nos de imediato para um ambiente frio e quase clínico, mas também estranhamente íntimo, como se estivéssemos a navegar por relíquias de um tempo perdido.
A aplicação principal é Action, que nos permite comandar um avatar estilizado numa representação abstracta do Hope Residence. Esta exploração, embora simples, conduz a momentos importantes, revelando objectos e eventos que ajudam a recompor a narrativa. Ao longo do jogo, Hymer vai disponibilizando novas aplicações, algumas essenciais, outras meramente recreativas. E há algo de comovente nesta partilha: a IA sabe que está perto do fim e parece ocupar os seus últimos instantes a mostrar-nos pedaços da sua existência, quase como quem folheia um álbum de memórias.
O outro pilar é Search, uma ferramenta que recupera logs antigos através de palavras-chave. A mecânica é extremamente simples, mas o impacto é grande: cada termo que introduzimos abre portas a fragmentos que ajudam a reconstruir a vida no Hope Residence. Há uma sensação de investigação activa, como se estivéssemos a puxar por fios soltos, tentando compreender o que aconteceu àquelas pessoas. A limitação a quatro resultados por palavra cria ritmo, mas também alguma frustração nos instantes finais, quando restam poucos logs e é difícil adivinhar termos relevantes.
A experiência não está isenta de falhas técnicas: janelas que fecham sozinhas, aplicações que não respondem e uma UX pouco fluida, sobretudo em consolas. Ainda assim, nada disto destrói a força do jogo, que se apoia mais no conceito do que na ergonomia.

Mundo e história
Hymer 2000 constrói o seu mundo a partir de fragmentos. Nada nos é entregue de forma organizada; cabe-nos percorrer caminhos, interagir com objectos e seguir pistas deixadas por Hymer para recriar a narrativa. Este método permite uma relação mais íntima com a história, porque somos nós, jogadores, que lhe damos forma. E a história que emerge é dolorosa.
O Hope Residence alojava doadores, pessoas cuja utilidade era definida de forma fria e desumana. Não eram vistos como cidadãos, não eram tratados como seres humanos. O contraste entre a tecnologia avançada que organiza este mundo e a brutalidade moral por detrás da sua estrutura social é um dos grandes temas do jogo. Cada log, cada objecto encontrado, reforça a ideia de que viviam vidas completas, com desejos e medos, mas a sociedade optou por não os ver.
A pareidolia desempenha aqui um papel central: objectos inanimados registados no programa Faces surgem como pseudo-rostos, substitutos perturbadores das pessoas verdadeiras. O jogador passa a reconhecer humanidade onde ela não existe, enquanto a sociedade do jogo recusava vê-la onde realmente existia. Esta dualidade é um golpe narrativo subtil, mas extremamente eficaz.
Hymer, por sua vez, actua como testemunha silenciosa deste passado. A sua voz é suave, quase contemplativa, e o peso dos seus últimos momentos dá uma camada emocional inesperada à experiência.
Grafismo
Visualmente, Hymer 2000 é deliberadamente limitado. O estilo pixelizado, com cores mínimas, cria um ambiente retro que remete para uma época em que os computadores eram simples, rígidos e quase austeros. Esta estética não serve apenas de referência temporal; reforça a sensação de que estamos a navegar por um sistema morto, um terminal congelado no tempo.
O mapa de Action é abstracto, uma representação simbólica mais do que literal do espaço físico. Já as ilustrações desbloqueadas pelo programa Faces variam entre o subtil e o inquietante, sempre evocando facetas humanas onde não deviam existir. Estes visuais perturbadores sustentam uma tensão constante entre familiaridade e estranheza, contribuindo para a atmosfera melancólica que domina o jogo.

Som
O design sonoro acompanha a estética minimalista. Os efeitos são discretos, funcionais, quase sempre reduzidos ao essencial. O silêncio domina grande parte do tempo, reforçando a ideia de isolamento dentro deste computador esquecido. Pequenos sons de interface, notas sintéticas e ruídos mecânicos criam um ambiente que parece suspenso entre o passado e o futuro.
Hymer fala connosco através de texto, mas o som que acompanha algumas interacções transmite uma presença quase orgânica, como se estivéssemos a ouvir uma máquina a respirar nos seus últimos instantes.
Conclusão
Hymer 2000 é uma experiência singular. Não depende de gráficos exuberantes, não oferece sistemas complexos nem acção frenética. Em vez disso, apresenta uma meditação interactiva sobre o significado de humanidade, o peso da memória e as injustiças que persistem mesmo em sociedades tecnologicamente avançadas. A forma como fragmenta e reconstrói a narrativa dá-nos agência real e transforma o jogador numa peça activa da história.
É um jogo curto, mas emocionalmente intenso, que permanece connosco muito depois de terminar. Uma obra pequena, mas marcante, que mostra como os videojogos podem questionar, sugerir e emocionar sem recorrer aos formatos tradicionais. Hymer 2000 não é apenas uma história para descobrir; é uma história para montar, para sentir e, acima de tudo, para contemplar.