O acidente nuclear de Chernobyl deixou marcas profundas na história contemporânea, não apenas a nível ambiental e humano, mas também na cultura popular. Inspirado nesse cenário desolador, o estúdio ucraniano GSC Game World criou uma trilogia de jogos que mistura tiro na primeira pessoa, sobrevivência e elementos de RPG num mundo hostil e imprevisível. Agora, com a chegada de S.T.A.L.K.E.R.: Legends of the Zone Trilogy – Enhanced Edition numa edição melhorada, os três capítulos da série são reunidos com melhorias visuais e adaptações técnicas para plataformas modernas.
Este conjunto inclui Shadow of Chernobyl, Clear Sky e Call of Pripyat, agora sob a designação Enhanced Edition. Embora não se trate de um remake total, as melhorias visuais, os ajustes na performance e o suporte para resoluções actuais tornam esta a melhor forma de mergulhar na Zona — um lugar radioactivo, misterioso e perigosamente fascinante. Com uma jogabilidade exigente e uma atmosfera carregada de tensão e perigo, esta trilogia continua a ser uma proposta pouco convencional. Quem procura uma experiência com mão leve e acessibilidade imediata encontrará aqui uma verdadeira parede de betão. Mas para os que apreciam um desafio duro, complexo e envolvente, este relançamento pode ser um regresso inesquecível… ou a descoberta de algo singular.
Jogabilidade
A filosofia por trás da jogabilidade da série S.T.A.L.K.E.R. é simples: o jogador deve adaptar-se ao mundo, e não o contrário. Não há mãos dadas, setas indicadoras constantes ou explicações detalhadas. Desde o início, o jogo lança-nos num ambiente hostil, com poucos recursos e muitos perigos. O instinto, a observação e a paciência são tão importantes quanto a pontaria. A liberdade de acção é uma das maiores virtudes destes jogos. O mundo semiaberto permite explorar ao ritmo do jogador, aceitando ou recusando missões, enfrentando ameaças ou contornando-as, aliando-se a facções ou mantendo-se independente. O sistema de progressão é subtil: não há árvores de habilidades ou níveis, mas sim uma evolução orgânica que se sente no tipo de equipamento que conseguimos angariar e dominar.
No entanto, nem tudo envelheceu bem. A gestão de inventário continua pouco amigável, e a forma como o peso dos objectos influencia a mobilidade do personagem obriga a decisões constantes sobre o que levar e o que deixar para trás. O sistema de tiro, apesar de eficaz, está longe da fluidez dos títulos actuais, e algumas mecânicas secundárias como o lançamento de granadas ou uso de kits médicos podiam ser mais rápidos e intuitivos. O verdadeiro brilho da jogabilidade está na sua imprevisibilidade. Combates surgem do nada, emboscadas por mutantes alteram planos em segundos, e fenómenos como as anomalias obrigam a manter sempre a atenção redobrada. A morte pode surgir a qualquer instante — não porque o jogo é injusto, mas porque o mundo é intrinsecamente perigoso. Sobreviver, aqui, é mais do que uma mecânica: é um estado de espírito.

Mundo e história
Cada um dos três títulos apresenta uma narrativa autónoma, mas todas se entrelaçam para formar uma cronologia coesa. Shadow of Chernobyl introduz-nos à Zona e ao seu estranho ecossistema, focando-se num protagonista sem memória que tenta desvendar o seu passado. Clear Sky, que actua como prequela, explora o caos inicial causado por uma nova descoberta no centro da Zona, enquanto Call of Pripyat fecha o ciclo, analisando as consequências das investigações militares e científicas. O mundo recriado nestes jogos baseia-se numa versão alternativa da região em torno de Chernobyl, onde a radiação originou mutações, distorções físicas e realidades quase sobrenaturais. É um local isolado, decadente e opressivo, mas ao mesmo tempo carregado de detalhes que contam histórias — desde os prédios abandonados até às conversas esporádicas com outros stalkers.
As facções jogam um papel importante neste universo. Existem grupos com ideologias distintas que disputam território, recursos e influência dentro da Zona. O jogador pode interagir com estes grupos de forma livre, influenciando o equilíbrio de forças, provocando alianças ou desencadeando conflitos abertos. Estas dinâmicas conferem profundidade e tornam cada partida ligeiramente diferente. A narrativa não é entregue de forma tradicional. Há poucos momentos de exposição directa; em vez disso, a história é montada através de registos, diálogos fragmentados, acontecimentos no mundo e pistas visuais. Este estilo exige atenção, mas recompensa com uma sensação de descoberta constante. A Zona tem segredos, e apenas os mais persistentes conseguem compreendê-los.
Grafismo
O trabalho gráfico da Enhanced Edition foca-se em melhorar a apresentação sem descaracterizar o estilo visual original. A base continua a ser o motor gráfico X-Ray, mas com alterações substanciais: texturas mais nítidas, iluminação mais realista, melhorias nos modelos das personagens e um sistema climático mais dinâmico. A ambientação continua a ser um dos pontos mais fortes da trilogia. O mundo parece verdadeiramente abandonado, esquecido pelo tempo. A vegetação cresce sem controlo, os edifícios estão a ruir, e a paleta de cores frias reforça a ideia de um espaço sem vida. As zonas urbanas, como Pripyat, são particularmente impressionantes, transmitindo uma sensação de desolação que arrepia. As anomalias e os efeitos radioactivos recebem também um tratamento visual renovado. Agora é mais fácil distinguir as suas distorções subtis no ar, o que contribui para a jogabilidade mas também para a atmosfera, criando momentos de tensão visual sempre que se detecta algo fora do normal no ambiente. Embora a direcção artística se mantenha intacta, nota-se que este não é um remake completo: há animações rudimentares, algumas transições bruscas e modelos secundários que podiam ter sido mais trabalhados. Ainda assim, a fluidez geral é excelente, e o jogo corre com estabilidade a 60 fps em consolas como a PlayStation 5 e a Xbox Series X, com suporte a 4K.

Som
A componente sonora tem um papel vital em S.T.A.L.K.E.R., e isso não muda nesta edição melhorada. O ambiente auditivo é minuciosamente construído para criar desconforto e inquietação. O som do vento a varrer as árvores, o eco de tiros ao longe ou os rugidos abafados de criaturas ao nosso redor tornam cada momento imprevisível. A música quase desaparece durante o jogo, sendo substituída por uma paisagem sonora orgânica. É um silêncio inquieto, apenas interrompido por estalidos de radiação ou passos furtivos no cascalho. Quando a música surge, é geralmente em momentos de combate intenso ou eventos dramáticos, o que lhe dá mais impacto. Os diálogos mantêm-se em russo ou ucraniano, com legendas em inglês. Infelizmente, continua a não existir localização para português, o que poderá afastar alguns jogadores menos fluentes. Além disso, algumas linhas de texto são de leitura difícil devido ao tamanho reduzido da fonte e ao contraste com o fundo. No entanto, o trabalho técnico no som está bastante sólido. A direcção espacial do áudio é eficaz — conseguimos identificar a aproximação de inimigos, determinar direcções de tiroteios e reagir a sons subtis. Para quem joga com auscultadores, esta atenção ao detalhe torna a experiência ainda mais imersiva e perturbadora.
Conclusão
S.T.A.L.K.E.R.: Legends of the Zone Trilogy – Enhanced Edition não é uma revisitação suave nem uma modernização total. É, acima de tudo, uma celebração do legado da série, com melhorias suficientes para agradar aos fãs de longa data e introduzir novos jogadores a um mundo único — desde que estes estejam preparados para enfrentar os seus desafios. A série mantém a sua identidade: um equilíbrio entre realismo bruto, liberdade de acção e um mundo que respira ameaça em cada canto. Os três jogos continuam a ser experiências densas, ricas em detalhe e imprevisíveis, que recompensam a persistência com momentos de tensão, descoberta e sobrevivência quase à flor da pele. Apesar de algumas falhas técnicas e da ausência de certos luxos modernos, como uma interface mais acessível ou suporte completo para idiomas adicionais, esta edição melhora substancialmente a qualidade de vida do jogador sem diluir o espírito da trilogia.Para quem procura uma experiência fora do comum, onde o mundo não se adapta ao jogador mas exige adaptação e respeito, S.T.A.L.K.E.R.: Legends of the Zone Trilogy oferece algo raro: uma viagem intensa e inesquecível ao coração de um lugar onde o perigo espreita em cada sombra… e onde cada passo pode ser o último.